segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Estado cidadão é a ciberdemocracia

Domingo, 1 de Agosto de 2010 - Fonte: http://www.portalcorreio.com.br/jornalcorreio/matLer.asp?newsId=144749


Luiz Carlos Sousa


De tempos em tempos há previsões de verdadeiras revoluções que estão por vir. Não faltam arautos para anunciá-las. Difícil é compreendê-las e decifrá-las como faz o professor Flamarion Tavares Leite, doutor em Direito pela PUC/SP, quando o tema é a internet e o direito. Ele chega a prever a criação de uma cultura interconectada que abolirá diferenças nacionalistas e com um direito supra- estados. “Vejo um grande poder de transformação capaz de superar todas as diferenças”, acredita. Nessa conversa, que contou com a participação do filósofo Emerson Barros de Aguiar, o professor Flamarion fala de Kant, de ética e até da solidão dos que se escondem atrás de um teclado para se comunicar e buscar a felicidade.

A entrevista
- O senhor está coordenando a “Coleção 10 lições’, que tenta tornar mais acessível a obra de grandes pensadores, como Kant, Marx e Maquiavel. Como surgiu essa idéia de trazer a filosofia, a economia e a política para uma linguagem coloquial?
-Essa coleção teve origem no meu livro “10 lições sobre Kant”, que não pretendia, inicialmente, fazer parte de coleção. Depois, com a aceitação que teve do público, entramos em conversação – eu e a Editora Vozes - e pensamos que este livro poderia ser transformado em uma Coleção.

- O que proporcionou a transformação do livro “As 10 lições sobre Kant” no início de uma Coleção?
- A estruturação do livro, que tem um prefácio, uma introdução, as dez lições e uma conclusão com a bibliografia. Mas a principal característica é pinçar, nas lições, os conceitos centrais do pensamento do autor analisado, numa linguagem acessível que possa alcançar uma base ampliada de leitores.

- Apesar do trabalho já concluído e impresso a pergunta é: dá para reduzir Kant em 10 lições?
- Confesso que tive um enorme trabalho e como diz o prefaciador, Tercio Sampaio Ferraz Junior, que foi meu orientador no doutorado, penetrar nesse labirinto intricado do pensamento kantiano não é fácil. Ele afirma que esse livro “é um exemplo de arte sintética”. Esse é o objetivo da Coleção.

- A Coleção enfoca o trabalho de pensadores, que já morreram, mas cuja obra permanece atual?
-Permanece atual. E muitos ainda não foram totalmente entendidos. Kant dizia que chegou um século adiantado. E esse vaticínio ainda hoje não se concretizou, porque se estuda e procura-se compreender o pensamento kantiano, que continua atual, assim como o de Marx, apesar do fim dos governos socialistas baseados em sua teoria.

- Como o senhor avalia esse movimento que hoje impõe quase que o pensamento único do marketing de vendas, com todo o mundo pressionado, praticamente sem limite?
- Marx não previu a globalização, mas ela não se dá apenas em nível econômico. A globalização hoje é, sobretudo, da internet. Quando houve a revolução industrial, o que ocorreu foi a utilização do pensamento científico da época em termos de elementos material e energético. A força humana de trabalho e a produção embasavam todo o pensamento industrial e mercantilista. Atualmente, temos o modo eletrônico-digital, paradigma informacional que traduz o mundo em dados binários.

- Como o senhor se classifica em relação a esse contexto de hoje?
- Eu sou da geração atômica, do texto, do papel, do livro, assumidamente analógico, enquanto os jovens são da geração digital. Eles têm uma dificuldade de descer ao texto. Preferem o ciberespaço, a internet. Essa é uma das questões fundamentais de hoje. E não se pode ignorar o que é moderno, contemporâneo, o crescimento do próprio universo digital, da mídia e da internet.

- O senhor defende em um de seus livros uma espécie de soberania do ciberespaço. Como seria isso?
- A ciberdemocracia. Foi lançado agora em 2010 um livro de André Lemos e Pierre Lévy, enfocando a internet rumo a uma ciberdemocracia planetária.

- Essa cyberdemocracia não nos remete ao romance “1984” de George Orwell que traça um cenário de onipresença da tele tela – que hoje seria a internet?
- De um lado, há realmente esse perigo, como a idéia do panóptico de Foucault, do big brother, do qual, infelizmente, temos uma versão estereotipada do que seria o “grande irmão”: o estado vigilante, ditatorial e controlador. Nos filmes “Inimigo do Estado” e “A Rede”, citados em meu livro” Os Nervos do Poder”, temos exemplos de um estado controlador, através do meio digital.

- Aliás, há um projeto firmado entre vários países...
- O projeto “Echelon”, firmado através de um acordo entre Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, em decorrência do qual 120 satélites estão nos espionando diuturnamente, de tal maneira que toda conversa que nós temos através de fax, telefone, internet, telefone móvel, GPS etc. é captada e analisada. É a idéia de um controle via satélite de todos os meios de informação.

- Qual a reação a isso?
- Digo nesse meu livro que paralelamente a esse estado do big brother, do panóptico, temos também o Estado do cidadão, no qual ele exerce a ciberdemocracia, essa multimídia, que gera a inteligência coletiva interconectada. Ela vai se opor, de certa forma, ao Estado. Os grandes movimentos, hoje, estão dentro do ciberespaço, da rede mundial de computadores de cidadãos cada vez mais independentes em blogs, microblogs, twitter. Isso é transformação, ciberdemocracia. A ideia de um cidadão planetário, conectado via digital. Tudo em tempo real. Isso é o outro lado da moeda à opressão do Estado.

Emerson Barros de Aguiar – O Arthur Clarke dizia que o avanço tecnológico vai fazer com que o crime seja praticamente inviável, por causa da vigilância sobre a sociedade...
- O filme “Minority Reporter” mostra isso: antes da sua ocorrência, já se tem o controle.

Emerson – Mas estranhamente, não sei se por uma desconfiança atávica contra a tecnologia, quando a gente olha para o futuro em termos de romance, você percebe que se produz anti-utopias com a tecnologia do que praticamente um país. A que o senhor atribui isso?
- Eu atribuo à própria – creio que os romancistas vão por essa linha – desconfiança do ser humano. E no que ele pode produzir: a inteligência artificial pode ser pior do que o próprio homem...

- Numa se comunicou tanto, nunca foi tão fácil interagir e nunca houve tanta solidão...
- Muita gente não consegue ser o que é se não estiver diante de um teclado, na frente de uma tela de computador, anonimamente...É a isso que me refiro como global, a inteligência mundial ou coletiva interconectada. No Brasil hoje temos entre 45 e 50 milhões de usuários da internet. No mundo, 1,5 bilhão. E o maior crescimento não é nos países desenvolvidos, mas na América Latina, África, Oriente Médio e Caribe.

Emerson - A revolução sempre acontece onde não se espera...
-É verdade. Marx, por exemplo, previu a revolução num País industrializado e ela foi acontecer exatamente na Rússia atrasadíssima. Apesar da idéia de solidão, eu creio que o usuário do ciberespaço tem a necessidade umbilical de estar conectado a um pensamento coletivo.

- Mas a saída para a existência é tecnológica ou filosófica?
- Hoje, mais do que nunca - e alguns filósofos estão céticos por isso -, há um embate entre tecnologia e filosofia. A Filosofia surgiu como projeto filosófico pensado por Sócrates – não apenas um diletantismo, uma especulação. Em Sócrates, há um projeto efetivo de transmitir, ensinar e perpetuar a Filosofia, seguido por Platão e Aristóteles, que é quando vai nascer a chamada ciência.

- Como o senhor vê historicamente a Filosofia?
- A Filosofia é a mãe das ciências. Depois, a ciência se libertou da Filosofia, mas esta manteve, de qualquer maneira, o seu status de “scientia scientiarum”, a ciência das ciências. Na idade média tivemos uma transformação por conta da teologia. Na modernidade, graças ao pensamento científico, houve uma bifurcação entre filosofia e ciência, porque o que vai pesar na idade moderna e que veio libertar do pensamento teológico da idade média é exatamente a ciência de Galileu, de Copérnico. Foi aí que começou o pensamento científico, embora ligado à questão filosófica, que entrou como um elemento catalisador dessa transformação científica.

- Também foi com Galileu que a ciência se rebelou em relação ao pensamento religioso...
- O homem começou a se desvincular do problema teológico. E quando penetramos na época contemporânea, sobretudo a partir da revolução industrial, nós vemos a tecnologia assumir cada vez mais um papel de direção, de comando, se distanciando da Filosofia. Hoje, a tecnologia está praticamente independente da Filosofia. E nessa queda de braço, a tecnologia parece, a meu ver, estar ganhando por um round.

- A tecnologia está assumindo um papel que torna desnecessária a filosofia para entender o homem?
- Por isso, a Filosofia caminhou, no início do século XX, para o campo da estética, da comunicação, da linguagem.

Emerson – Num caminho muito crítico da tecnologia?
- Já fazendo a crítica. Já começa a dizer: olha não é bem por aí nosso caminho. A Filosofia já aponta o desvio.

Emerson – A escola de Frankfurt produz toda a reflexão sobre a tecnologia...
- Exatamente. É a grande precursora. Ela já sentiu que a tecnologia estava caminhando por uma linha que não era a dela. Por isso digo que é necessário um retorno a Kant.

- Por quê?
- Porque as bases da ética kantiana são mais do que nunca necessárias e estão sendo mais do que nunca estudadas. A União Europeia, hoje, tem um projeto de bases kantianas: a ideia de uma paz mundial – Kant tem uma obra chamada À Paz Perpétua. Por isso, falo da internet, da globalização, dessa cidadania do ciberespaço e da inteligência interconectada, da ciberdemocracia, defendendo, de certa forma, um projeto com base em pressupostos kantianos.

- Como será esse projeto?
- Primeiro, a criação de uma nova ciência, o ciberdireito e, segundo, um governo planetário.

-Será possível todos sob um mesmo manto, um mesmo governo?
- O futuro, de uma perspectiva da democracia globalizada, é algo quase inimaginável. Entretanto, procuro ver todo esse processo, apontar caminhos. E vejo um caminho: utilizar todo o aparato científico e tecnológico proporcionado pela internet, que é o medium planetário por excelência. Órgãos como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, o Banco Mundial, prefiguram, respectivamente, os Ministérios do Comércio, da Saúde e das Finanças de um governo mundial.

- A globalização hoje é mais que econômica?
- Ela não é apenas econômica, não é só política, monetário-financeira. Ela é sobretudo da internet. A grande globalização está no elemento digital. O homem não procura mais dominar a natureza – no sentido de Francis Bacon: de torcer o pescoço dela -, mas dominar a natureza dos pixels, das informações binárias, do mundo digital. Não é transformação da matéria, o extrativismo. Ela está sendo transformada binariamente.

- De certa forma é um retorno à origem, porque ou preserva ou se acaba...
- Exatamente isso: ou preserva ou se acaba. Por isso, esse futuro é meio nebuloso de se enxergar, mas está presente cada vez mais. As ficções de antigamente hoje estão se tornando realidade. De tudo o que já li sobre ficção científica só não se realizaram, ainda, duas coisas: o tele-transporte de Jornada nas Estrelas, embora já exista a tele-portação de partículas inanimadas; e a touca cerebral – embora já exista a experiência com chips implantados em cérebros para transmitir informações.

- A cada ano se dobra o conhecimento humano. Onde vai caber tudo isso e para que vai servir tudo isso e como a educação vai se apropriar desse conhecimento para transmiti-lo sob a perspectiva de que quando você estiver no terceiro ano de Filosofia tudo o que aprendeu estará superado. O homem voltará sempre aos princípios?
- Por isso a Filosofia não morreu e não morrerá nunca, mesmo soterrado o momento filosófico pela questão tecnológica. As questões imanentes do ser humano não desaparecem, elas continuam as mesmas: quem sou eu, de onde vim, para onde vou? E mais: um fenômeno sobre o qual o homem não deixa de pensar - que é a morte. Por mais tecnologia que se tenha, como a criogenia, o fenômeno morte não deixa de tocar o ser humano. É uma questão filosófica presente desde a Antiguidade.

- O livro de papel está com os dias contados?
- Eu faço a apologia escancarada do “livro tradicional”, que não vai acabar, apesar do digital. É como o cinema. Quando surgiu o VHS, os apressados disseram que o cinema iria acabar.

- Com esse avanço exponencial do conhecimento como ficará a História se estamos perdendo a capacidade de reflexão, uma vez que está tudo em tempo real?
- Tudo está na revolução digital, sobre a qual estou falando. Essa relação da internet, essa inteligência coletiva, essa interconexão planetária tem uma relação direta de tempo e espaço e, de fato, rompeu barreiras. Desde a revolução da própria linguagem: dos sinais, para a falada, para a escrita e finalmente a midiática. E a comunicação sofreu o encurtamento do tempo e espaço. Hoje, a informação é transmitida de forma instantânea.

- Será que o mundo conseguirá construir um sistema jurídico que possa atuar planetariamente?
- O Ciberdireito deve ser um novo direito, com o objetivo de disciplinar as relações do ciberespaço. Portanto, impõe-se a criação de uma nova ciência. Sob o ponto de vista político, a internet pode criar uma nova categoria de cidadão, uma espécie de cidadania do ciberespaço. Impõe-se a criação de um órgão supranacional, composto de representantes dos Estados, que não seria encarregado de aplicar o ciberdireito tão- somente, mas uma entidade que tivesse os poderes executivo, legislativo e judiciário e com força cogente, para obrigar ao cumprimento das normas. Indubitavelmente, chegaremos a esse ponto.

- Os Estados Unidos vão aceitar que um soldado deles seja julgado por crime de guerra no Afeganistão?
- Você está tendo uma visão política localizada no hoje. Mas você tem que considerar a revolução midiática, digital. Estou vendo nela um grande poder de transformação, capaz de superar todas as diferenças nacionalistas. Pode-se pensar numa Corte Superior planetária. A revolução midiática levará a isso como levou a baixar livros diretamente da internet e à criação de maravilhas da engenharia como o smartphone e o blue- ray, ao jornalismo cidadão e ao jornalismo móvel. Tomando-se uma questão isoladamente (Estados Unidos-Israel-Irã), sem conectá-la à revolução digital, à ciberdemocracia global, tem-se uma visão estática.

- Apesar de ser um fenômeno recente, ainda pouco estudado, a internet tem volta?
- Não, não, não! Embora eu diga que não se destruiu o livro, o cinema, eu asseguro que a cibercultura veio para ficar, evoluir e transformar. Haverá uma reconfiguração, em escala global, do aparato estatal ideológico dos países.

- Como essa transgressão criativa obedecerá a um arcabouço jurídico planetário?
- É necessário que tenhamos a visão de que um órgão terá de ter essa função e ser aceito pelos Estados. As nações europeias, hoje, têm dificuldade de aceitar as normas supranacionais, mas chegará o momento em que não prevalecerão as vontades particulares. Temos que considerar a opinião pública, que de maneira inconsciente e dialética, fatalmente se curvará. Aliás, já se curvou. Tenho amigos que tinham forte resistência ao computador. Depois que o conheceram, não abrem mais mão dele. Viciaram-se, positivamente. Eles se sentem conectados agora. É a marcha da História, todos acabam se amoldando. É inevitável.

- E o nosso futuro, as crianças?
- Elas pegam um livro e fazem leitura dinâmica; eu preciso de tempo para entender conceitos. Elas têm, em sua maioria, essa aptidão para entender o mundo digital, de decifrar códigos dificílimos, como no filme “Código para o Inferno”, onde uma criança autista resolve um enigma com uma velocidade impressionante. Elas estarão bem num mundo interconectado.

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